segunda-feira, maio 25, 2015

Terrorismo III

Aterrorizado pela imagem do morto,
Baptizaste o ataúde com um bramido:
- sou tu! 

Mas a aurora que trouxe o dia seguinte,
Foi apenas a desilusão ejaculada para
Fora do ventre da mudança,
E as cinzas do que afirmaste ser

Ontem.

quinta-feira, maio 07, 2015

Terrorismo II

Os nubentes rejubilam ao som da valsa inaugural
De umas segundas núpcias.

Um homem despe a sua camisa
- encarnada –
E num gesto limpa-nos,
Nem que por um instante,

Da mancha da desumanização.




sexta-feira, janeiro 09, 2015

Terrorismo



O medo chega para te habit(u)ar,
Trespassando o vão ao colo de uma imagem.

(o homem esboça uma súplica antes de ser abatido)

Impávidos, os nubentes chegam para as selváticas núpcias!
E numa noite interminavelmente asfixiante,

Dançam contigo: Até à morte.

terça-feira, março 25, 2014

Carta ao Pai




Olho para a tua estante como já o fiz tantas outras vezes. Nesse tempo ainda estavas sentado na poltrona, ali em baixo, na sala. Do tamanho que eu tinha parecia um trono e isso faz-me como sou hoje. E nenhuma cadeira será lugar, se não puder pousar os braços em livros: como tu. Porque esse será sempre o assento de onde tu és meu pai e eu sou teu filho.
A estante parece hoje menos alta. Precisava das pontas dos pés para chegar a metade dela. Era do tempo que precisava de me esticar para te chegar ao colo, como agora para chegar ao que me és. Essa é a largueza da estante que deixaste cheia: és tu em livros e eu em admiração do que és. E posso, aqui diante da estante, compreender a dimensão da empreitada de nos fazermos em Biblioteca. Deste-me isso e o tino. Ou deste-me isso, e isso é o tino. E o nome e a possibilidade de eu poder ser como quisesse. Desvio-me do sentido do texto – nisso não sou como tu – sou menos concentrado. Mas recebi ainda de ti a riqueza de saber ser desarrumado. Outra lição dos teus livros – dos teus montes de livros. Demasiado arrumado não pode ser encontrado.
Cá estou, diante da estante. Os volumes todos, agora, ao alcance do meu braço. Escolho este e mais aquele para tos subtrair da estante. Um porque é grandioso e deve ser lido, o outro porque não sei porque o tens ou como te chegou. Ou o que é, e descobri-lo será mais uma lição tua – sobre ti. Agarro os dois livros com as mãos – “tens as mãos do teu Pai” sempre mo disseram – e trago-os comigo.
Um dia a tua biblioteca estará aqui e a minha será de ti também. Porque essa é a natureza do que nos une: que eu sou de ti e tu estarás sempre comigo.

segunda-feira, janeiro 06, 2014

Postal de Natal A Quem de Longe Pergunta Como Está Tudo

De resto o mundo aqui continua igual.
Os que mandam continuam os filhos da puta do costume. Os que são mandados caminham ainda um pouco mais curvados sobre o peso da ignomínia humana. E, este ano, destruíram o Natal. Sorte dos que foram para longe. Assim não têm que assistir a este deambular de um povo sorumbático, as ruas despidas da forma de natal. Sem corpo não sobrevive espírito. Sem luz. A intermitência luminosa do brilho que anunciava a natividade foi-se das artérias da cidade e das caras das pessoas, que agora arrastam lá o seu quotidiano. A primeira vez que ouvi boas festas, estávamos já em meados de Dezembro. Era o 15 ou 17, faltavam nove dias para a Consoada. E nem isso conseguiu trazer à memória o cheiro do pinheiro da minha infância. Espero que chegar a Casa, seja o despertar desse natal, esse Natal que os escroques estão decididos a roubar-nos. E juro, que se alguma vez o divino justificou castigar alguém, eram estes. E era agora.
Quero ver que teologia vai explicar neste século, que tão poucos tenham rasgado a meio tantos. Enquanto jogam aos dados com o nosso destino numa mão e contam os seis dinheiros de Judas na outra. E assim ficaremos, despojados disso, a chorar as 5 chagas que ficaram. Cristos, e não meninos. E se um triunvirato de Reis chegasse, seriam ilusionistas vigaristas, que em troca de um falso Natal, nos exigiriam o Ouro, o Incenso e a Mirra. E nós entregaríamos, esperança cansada e desesperada, em troca da falsa promessa de um próximo Natal mais próspero.

Um Natal curvado, Ana, não é Natal.

quarta-feira, maio 01, 2013

- Sabes P. - digo-lhe  - essa coisa de sermos iguais na morte...
- Todos iguais.
- Essa coisa é uma falácia... Andamos todos enganados.

E andamos... todos a pensar que a morte nos toma do mesmo modo.

- Então porquê? - diz P. com o escárnio habitual que reservava para as coisas que eu dizia.
- Não é o morto que experimenta essa mórbida igualdade. Somos nós, aqueles que amamos, que, perante o vazio, nos tornamos todos iguais. É essa lancinante dor de ver partir quem se ama que nos alcança a todos com os mesmos braços num amplexo frio e abismal.
- Quando amamos.
- Quando, realmente, amamos P.

Desta feita, foi com a sua vontade na ponta dos dedos que P. abriu a gaveta e acomodou mais sal em torno do meu coração deposto.

- Para que não se deteriore, que agora é sinónimo dessa outra coisa que o invade inadvertidamente.

quinta-feira, abril 04, 2013


- Voltaste rápido - disse o Sr.P. desalentado.
- Não consigo, ainda.
- Palavra bastante covarde.
- E já vim tarde.
- Chegar atrasado a ti próprio, eis o conceito mais definidor do que és e do que tens para oferecer-me. De certeza que não preferes segurar essa caneta um pouco mais?
- Não. Aqui está. Devolvo-ta que faz-nos melhor que a empunhes tu. Pelos vistos esse líquido que corre na caneta sai da tua pele.
- Que é a tua mascarada com tinta.
Pouso a caneta sobre a secretária e finjo-me indiferente à verdade provocatória. Quando me aproximo repara no saco que trago:
- Mais sal? - pergunta-me cinicamente.
- Sim, é mais sal.
- O irónico da salga é ser um tipo de cura, de conserva. Mas apenas neste abstracto mundo da semântica, que só existe daquela porta para dentro: a fingir.
Pouso o saco como um desabafo. O Sr. P. abre a fatídica gaveta onde um dia depositei o coração para que não me incomodasse e deita-lhe mais sal. Faz um esgar escrupuloso sobre o coração salgado e devolve-me o saco vazio:
- Finjamos mais um pouco então...