domingo, abril 23, 2006

Os biscoitos da infância
Subitamente sobe ao palato da memória o sabor dos biscoitos que gostei: eram os pequenos anos, hora da infância. Apetece reviver os dias, atravessar a porta, passar na sala, subir as escadas à cozinha, no cimo do pesado frigorífico, e dentro de uma caixa de plástico, grande, cilindro achatado em forma de tambor encontrar: os biscoitos da minha infância. Abre-se-me a boca, mas trinco vazio e o sabor desvanece-se: sabem a isso os biscoitos de infância quando a tentação nos faz morder. Da memória passada devemos sempre saber isso: são como os biscoitos de infância, são biscoitos do passado, são sabores etéreos, filtrados, de um lado e outro, por aquilo que foi a vida e por aquilo que desejámos que tenha sido a vida. São pedaços imateriais projectados pelo desejo e nostalgia nos nervos sensíveis do corpo. Desvanecidos no momento em que procuramos trincá-los. Reviver a memória tem de ter a condição de filme: somos somente espectadores, e como no pecado original, não podemos trincar. Se aprendermos isso, podemos, tranquilamente sentar numa cadeira confortável e saborear os biscoitos de infância. De olhos fechados, mãos quietas e principalmente, com a língua colada ao desejo, sem procurar sentir o ar que nos enche a boca. Assim se saboreiam os sabores passados: deliciosamente parado e sem a tentação de repetir o irrepetível. É essa a noção madura da memória feliz: que as coisas vão desaparecendo do nosso lado como condição absoluta do tempo na vida. Os biscoitos de infância são como os mortos saudosos: jamais me deixarão por completo, a única dor é ser tentado a pensar que poderiam viver ainda ao meu lado.
Tranquilo, vou fechar a boca, os olhos, pousar as mãos longe deste teclado e saborear os biscoitos da minha infância, com uma caneca de leite com café de cevada – ainda de saco – que a minha avó me preparou em todos os dias que estive com ela.
Até breve…

1 comentário:

Anónimo disse...

os meus sentimentos e os meus parabéns!