Ausentei-me de me escrever a ti. Como se amparasse a dor ignorei-te e fui-me ausentando de sentir. Impedi o ímpeto mais secreto e também o mais forte que me forçava a pensar em ti. Impedi-me... Ausentei-me de mim também e fui vivendo um pouco solto, escorreguei por entre o quotidiano e quando dei por mim, vivia longe do que era. Não há outra maneira de viver excepto fincar os pés na lama terrena e caminhando decidido. Por mais suja que a lama seja e que me respinga para os olhos (que choram e já choravam – melhor assim, escondem a verdadeira razão das lágrimas e dão-lhe a dimensão física da dor – por outras razões). Que me entra para a boca, e escorre pastosa e fria pelo corpo, suja mas real. A rotina salva-me por vezes de sentir-te onde dói mais, e se devíamos viver cada dia como se morrêssemos amanhã, eu finto o senso comum e vivo cada dia como uma morte lenta e o amanhã como se só pudesse nascer lá. Quero limpar-me todo, redesenhar-me e ser mais. Mas das torneiras sai só mais lama e a caneta da reinvenção está seca e rasga o papel. E por entre a lama no papel, dos cortes onde sou pareço-me sangrar impiedosamente. Ás vezes penso se não sou mais nestas linhas do que nos dias em que se assemelham a viver. Quando me confundo nestas curvas entristeço-me por não Ter coragem para viver decentemente. De não agir conforme o que sou por dentro. Vou acabar igual às rotinas em que me disfarço. Repetitivas, insensíveis, duras e inférteis.
Pergunto porque me iludo constantemente. Espalho as armadilhas pelo caminho como se não tivesse memória das feridas que ainda sangram. Uma atrás de outra, repito os inimigos das minhas emoções. Conheço bem as suas caras, são familiares, mas sempre que me reencaminho neste Pathos circular as suas caras vem tapadas por uma nevoeiro brando, perigoso nevoeiro porque parece inofensivo e me baixa o instinto. Só quando as piso, quando os seus dentes fortes, grandes, brilhando como estrelas afiadas se enfiam rapidamente na minha carne se me repetem na cabeça e no coração as emoções de desespero por esta vida inútil e vazia daquilo que mais desejo. Percebo nessas dentadas de vida onde a carne se perde e a alma nos músculos e veias se esvai em sangue, que não sou feito para ninguém, que sou disforme e anormal. E vejo-me aí, nos reflexos ainda entre o meu sangue dos dentes da armadilha, que sou a cada dia menos do que o que quero, mais anestesiado, mais absorto, menos abstracto e mais físico. Então vejo cara de besta através de uns olhos de besta. Sou sujo, sou feio, sou vazio e os meus olhos nunca disseram tanto o que sou: Nada. Debruço-me de quatro e cheiro a terra, lambo as feridas, urro porque dói e fujo assustado, mancando. Ainda mal habituado a minha nova condição desapareço para uma cova animalesca. Sossego de cansaço e o medo não sobrepõe o dorido do corpo massacrado pela minha estupidez. Serei vagabundo dos que não olham em frente, encontrarei no chão, apenas marcas dos outros, e marcas não ferem, e viverei das raspas da sua existência. Os pedacinhos de emoções mais anónimas dessas que deixamos constantemente pelo nosso quotidiano. Umas mais doces, outras amargas de hipocrisia mas todas mais substanciais do que eu e mais humanas. Não olharei mais olhos até que a metamorfose seja mais completa. Levantarei a cabeça animal, de futuro, somente procurando a compaixão pelo animal chagado e inútil. Por companhia os parasitas, só porque me darão sentido, ou apenas uma miserável utilidade. Vagueio com eles até morrer e depois de morto, levanto-me da morte como se a procura da mão quente de um Deus que nunca conheci. Grito e choro por ele morto. Onde está o Deus que nunca me amparou, Pai? Onde estão os braços fortes para me abraçar do mundo feio e dizer-me que sou seguro onde estiveres? A ilusão vai-se esvaindo em lágrimas de fantasma, e na minha informalidade vejo-me a chorar por dentro pela primeira vez. Grito como se acordasse de um pesadelo, grito subitamente, grito automático, mas o suspiro de acordar, não tem lugar na dimensão claustrofóbica de acordar para uma realidade mais dura. Sento-me numa campa qualquer a apodrecer enquanto espero anjo ou demónio. Mas sinto que todos se esqueceram de mim e apodreço até morrer de mim. Pela primeira vez, completamente. No momento de morrer, levanto os olhos como já não fazia há muito tempo, percebo que ninguém me virá buscar à lixeira da existência. E vejo com ironia que até me faz um sorriso podre, que os anjos e demónios que esperei até adormecer estiveram nas caras das pessoas que a besta não quis enfrentar. Poderia renascer da esperança de ter visto a demanda, mas peço para morrer e desejo-o ardentemente, perdida a esperança na própria esperança porque sei que a minha vida é absolutamente e verdadeiramente circular, e que a dor é o dogma do meu ser na terra. Não porque quero, tampouco por me ser imposto, mas somente porque sou.
Olho um pouco para o que escrevo. No meio do nojo aprendo um pouco de mim. Escrevo reflexivamente, sempre. Escrevo só, escrevo para mim fingindo escrever-me-te. E percebo que os mes que povoam os meus verbos e a minha carne são somente, e pelo paradoxo do zero em que nada pode ser alguma coisa, a tua ausência. Não há mãos em frente à minha corrida para receber o meu testemunho e por isso tropeço constantemente. A minha vida e escrita trôpega são a substância da tua ausência em mim.
Tento desistir de ti. Despedir-te de mim. Despejo-me das forças que te querem para poder ser menos perto de ti. Mas não morro logo. E não poucas vezes acordo por ti. Não porque tu queiras mas porque eu finjo da banalidade do que me dizes, que me pediste coragem e esforço.
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