terça-feira, outubro 30, 2012
Estás sentada numa ponta da mesa e ele do lado oposto. É uma longa mesa de jantar mas a ti, que dizem que alucinas com estas coisas, parece uma mesa de ping-pong – às vezes o que vemos é o sentido das coisas e não o que são, ou o que te disseram que era.
- Puxa!
E reparas pela primeira vez no fio que atravessa a mesa, inerte que é a qualidade das coisas físicas a que falta ânimo, ou que estão à espera de ânimo. Do outro lado da mesa está a pistola, apontada a ti. A mira parece-te, do distante que estás, certeira. Um palmo abaixo do teu ombro esquerdo é onde te atingirá. O mais estranho é o aparato que segura a pistola. Uma base sólida, um goniómetro que permitiu que alguém apontasse geometricamente a mira ao ponto óbvio de ti. De lado duas roldanas, ou serão três, de esconso não se distingue bem, por onde passa o fio antes de agarrar o gatilho. Tudo parece preparado e sólido. Funcional e credível.
- Puxa. – repete-te.
Deixas os olhos seguirem pelo fio até à ponta que está do teu lado. Termina amarrada a uma argola dourada. Se tivesse uma data, ou daquelas juras eternas em que não acreditas gravada, seria uma aliança. Agora que reparaste no mecanismo todo e como está ligado é fácil ver o que está a acontecer, antes estavas demasiado distraída, a tentar perceber se estavas sentada numa mesa de jantar ou de ping-pong.
O que ele quer para que tudo o que montou funcione é que tu puxes o gatilho:
- Puxa – insiste nervoso como alguém que deseja que tudo se precipite.
Mas agora que percebeste a engenharia de tudo o que te aconteceu até agora, não te apetece. Há uns minutos atrás, se não tivesses visto a argola amarrada ao fio armado à pistola talvez tivesses puxado, porque só te interessa correr o risco de descobrir o que se vai passar se fizeres algo que não consegues perceber. Saltar de um precipício é uma coisa, ser empurrado é outra. Não há empurrões de fé: só saltos.
E como és o tipo de pessoa que acha que cada um deve ser responsável pelo que quer, dizes finalmente:
- Puxa tu.
Diz que não pode, coitado, tem as mãos amarradas. As pernas presas e outras desculpas paralíticas que o impedem de puxar o gatilho. Que a banalidade é um tipo de paralisia é o único pensamento que te ocorre e que te aborrece. Bocejas enquanto te levantas e lhe apontas o revólver que descobriste que trazias. Bocejas ainda mais quando puxas o gatilho e o atinges no meio da testa, no xis da palavra sexo que tinhas lá escrito. Isso sim é pontaria:
No jogo da carne, nunca saias de casa sem um pequeno revólver.
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1 comentário:
Um cavalo parado; presa a ele uma carroça parada. Na carroça, dois corpos com uma corda ao pescoço e mãos amarradas atrás das costas. Estão mortos
Voltamos ao cavalo. Está parado. Aguarda qualquer coisa. Uma ordem, talvez. Mas o cavalo não percebe nada. É muito estúpido.
Texto de Gonçalo M. Tavares in Short Movies
T.
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