quinta-feira, fevereiro 26, 2004

"Poi piovve dentro a l'alta fantasia"

"Chove dentro da minha fantasia"

Purgatório (XVII,25 ) Dante


Abro a porta e olho o espaço cheio com coisas que desejo e outras que quero aprender a desejar. Pela porta perra, entreaberta receosamente e a verdadeiro custo de braços, deixo-me a observar vagarosamente esse novo lugar. Quero conhecer a cor, a luz e os cantos por onde escorre a humidade. Abro mais para ver mais amplamente e olhar aquilo que a porta tem para esconder.
A medo, como que a pedir licença, com o saber de que a porta muito aberta me pode revelar... e ainda não quero entrar... e nesse quarto não haverá resquícios da minha presença... Abro um pouco mais e range, recuo para que ninguém me ouça e fujo para o lugar onde estava a minha sombra. Desenho uma ideia mais completa do quarto, como se o visse por inteiro, e paro na poltrona que descansa no meio. E nessa contemplação mais longa de riscar o que olho que encontro tempo para me imaginar também. Mais tranquilo, vendo sem ser visto, sendo sem realmente ser, consigo arriscar a projectar um desenho de mim dentro desse espaço. Saio, espectro, de mim e vejo-me a sentar na poltrona, pés descalços estendidos e o sol de uma janela que só agora pensei a oferecer vontade de ficar.
Do nada ouve-se ruído, passos abusivos, barulhos abusivos e intrusos. Volto automaticamente, sem prisão nenhuma, ao eu escondido por detrás da porta. Abre outra porta no lado oposto ao que estou, e vejo só uma sombra lamacenta sentar-se na poltrona. A minha porta fecha-se tão repentinamente, que eu nem sei se a fechei eu... e viro costas ao lado de dentro...

Nunca se sentiram como se vos tivessem cuspido no chão polido da vossa casa?... em cima do reflexo da vossa cara?...

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