terça-feira, março 25, 2014

Carta ao Pai




Olho para a tua estante como já o fiz tantas outras vezes. Nesse tempo ainda estavas sentado na poltrona, ali em baixo, na sala. Do tamanho que eu tinha parecia um trono e isso faz-me como sou hoje. E nenhuma cadeira será lugar, se não puder pousar os braços em livros: como tu. Porque esse será sempre o assento de onde tu és meu pai e eu sou teu filho.
A estante parece hoje menos alta. Precisava das pontas dos pés para chegar a metade dela. Era do tempo que precisava de me esticar para te chegar ao colo, como agora para chegar ao que me és. Essa é a largueza da estante que deixaste cheia: és tu em livros e eu em admiração do que és. E posso, aqui diante da estante, compreender a dimensão da empreitada de nos fazermos em Biblioteca. Deste-me isso e o tino. Ou deste-me isso, e isso é o tino. E o nome e a possibilidade de eu poder ser como quisesse. Desvio-me do sentido do texto – nisso não sou como tu – sou menos concentrado. Mas recebi ainda de ti a riqueza de saber ser desarrumado. Outra lição dos teus livros – dos teus montes de livros. Demasiado arrumado não pode ser encontrado.
Cá estou, diante da estante. Os volumes todos, agora, ao alcance do meu braço. Escolho este e mais aquele para tos subtrair da estante. Um porque é grandioso e deve ser lido, o outro porque não sei porque o tens ou como te chegou. Ou o que é, e descobri-lo será mais uma lição tua – sobre ti. Agarro os dois livros com as mãos – “tens as mãos do teu Pai” sempre mo disseram – e trago-os comigo.
Um dia a tua biblioteca estará aqui e a minha será de ti também. Porque essa é a natureza do que nos une: que eu sou de ti e tu estarás sempre comigo.

2 comentários:

éme disse...

leio (que) "demasiado arrumado não pode ser encontrado"; e torno a ler: "demasiado arrumado não pode ser encontrado"; e (de mim para mim) repito "demasiado arrumado não pode ser encontrado".
as palavras são (apenas) palavras;
(que)por vezes se agrupam de um modo sublime.

Jo disse...

Gostei...muito