Olho para a tua estante como já o fiz tantas outras vezes. Nesse tempo ainda
estavas sentado na poltrona, ali em baixo, na sala. Do tamanho que eu tinha
parecia um trono e isso faz-me como sou hoje. E nenhuma cadeira será lugar, se
não puder pousar os braços em livros: como tu. Porque esse será sempre o
assento de onde tu és meu pai e eu sou teu filho.
A estante parece hoje menos alta. Precisava das pontas dos pés para chegar
a metade dela. Era do tempo que precisava de me esticar para te chegar ao colo,
como agora para chegar ao que me és. Essa é a largueza da estante que deixaste
cheia: és tu em livros e eu em admiração do que és. E posso, aqui diante da
estante, compreender a dimensão da empreitada de nos fazermos em Biblioteca.
Deste-me isso e o tino. Ou deste-me isso, e isso é o tino. E o nome e a
possibilidade de eu poder ser como quisesse. Desvio-me do sentido do texto –
nisso não sou como tu – sou menos concentrado. Mas recebi ainda de ti a riqueza
de saber ser desarrumado. Outra lição dos teus livros – dos teus montes de
livros. Demasiado arrumado não pode ser encontrado.
Cá estou, diante da estante. Os volumes todos, agora, ao alcance do meu
braço. Escolho este e mais aquele para tos subtrair da estante. Um porque é
grandioso e deve ser lido, o outro porque não sei porque o tens ou como te
chegou. Ou o que é, e descobri-lo será mais uma lição tua – sobre ti. Agarro os
dois livros com as mãos – “tens as mãos do teu Pai” sempre mo disseram – e trago-os
comigo.
Um dia a tua biblioteca estará aqui e a minha será de ti também. Porque
essa é a natureza do que nos une: que eu sou de ti e tu estarás sempre comigo.
2 comentários:
leio (que) "demasiado arrumado não pode ser encontrado"; e torno a ler: "demasiado arrumado não pode ser encontrado"; e (de mim para mim) repito "demasiado arrumado não pode ser encontrado".
as palavras são (apenas) palavras;
(que)por vezes se agrupam de um modo sublime.
Gostei...muito
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